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Gigi Barreto cuidando das plantas na sua varanda (Foto: divulgação)

Casa Vida Cenário prova que a sustentabilidade na prática é possível e deslumbrante!

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03.01.2022
A cenógrafa Gigi Barreto conversa com a colunista Fe Cortez sobre seu projeto e como aplica economia circular e sustentabilidade na decoração.
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Em uma retrospectiva recente, a Casa Vogue publicou os projetos mais curtidos pelo público no ano de 2021. E em primeiro lugar está o quarto das bebês e das mães Nanda Costa e Lan Lahn. Foi esse projeto também que me fez me reconectar com a Gigi Barreto. A Nanda é uma amiga de longa data, e fiquei apaixonada pelo quartinho das meninas, foi quando ela me contou que quem havia assinado tinha sido o Casa Vida Cenário, o projeto de decoração e arquitetura da Gigi Barreto, e ainda disse mais: Fe, o projeto tem tudo a ver com você, ela garimpa peças, usa mão de obra de artesãos, pensa na sustentabilidade

Uau! Eu conheço Gigi de outros carnavais, literalmente, quando trabalhamos juntas alguns anos para o Spanta Neném, bloco de Carnaval carioca fundado no play do prédio em que eu morava, mas isso é pauta para outra história. Ué, mas Gigi não era cenógrafa? E dessas bem hypadas que já assinou projetos para nomes como Macy Gray, Baco Exú do Blues, Djavan, Maria Bethânia, Roberta Sá, Raoni, o grande cacique, peças de teatro como Portátil, teve até Globo de Ouro na TV. Mas não estava sabendo que durante a pandemia ela havia idealizado com seu marido, Jerry Marques, o Casa Vida Cenário. E junto com a arquiteta Tatiana Felner realizaram em cerca de um ano, 30 (lindos) projetos. Era o que eu precisava pra retomar esse contato e convidar a Gigi para repensar meu quarto, já que a vida vai mudar - muito - em breve, com a chegada do meu primeiro filho. 

Quarto dos bebês na casa da Nanda Costa e Lan Lanh, assinado pela Casa Vida Cenário. A poltrona foi garimpada, os balões feitos por artesãos, bem como as pinturas das paredes e os cestos de palha (Foto: divulgação)
Quarto casal Nanda Costa e Lan Lanh (Foto: divulgação)

"A casa é o nosso ponto de partida para a vida: uma soma de ideias, de escolhas, de pessoas, do que somos. Ela é a nossa identidade, a nossa maneira única de ver e estar no mundo. Ter a sua casa reinventada, feita e refeita, repaginada, de mãos dadas com uma artista que já criou para os maiores nomes da cultura do país é poder viver a experiência de morar em um lugar que reflete tudo o que você é, pode ser ou se transformou."

Quem me acompanha por aqui, sabe das minhas questões com o que vemos por aí na maior parte dos projetos de arquitetura: uma falta de responsabilidade socioambiental que só de imaginar me bloqueia de sequer pensar em contratar um arquiteto para assinar qualquer coisa na minha casa. Mas fomos conversando e vi que a proposta da Gigi é diferente. E dialoga com tudo o que escrevi até agora nesse espaço e com uma pergunta que não quer calar de vários profissionais do ramo: como fazer na prática uma arquitetura e decoração sustentáveis. Por isso fecho o ano com essa entrevista inspiradora e profunda com essa mulher que está fazendo isso e de forma linda, original e responsável. 

Fe Cortez: Gigi, você é cenógrafa, como se deu o nascimento da Casa Vida Cenário?

Gigi Barreto - O Casa Vida Cenário nasceu na pandemia, quando eu me mudei de apartamento. E ele tem tudo a ver com a sustentabilidade. A arquitetura residencial é muito elitista. E o fato dela ser muito elitista faz com que rode em torno disso um mercado zero sustentável. Quando eu penso em arquitetura, eu penso isso de uma forma longeva, não penso isso de uma forma efêmera. E a cenografia nasce dentro das artes, uma cadeira da faculdade de artes cênicas. E a arte no Brasil vem de um lugar de uma precariedade tamanha. Mas na pandemia ficou provado que a gente só sobrevive porque tem as artes, o entretenimento, a música, se não houvesse isso esse período teria sido vivido à beira do insuportável. Mas a arte vem de uma escassez muito latente, não valorizamos a cultura como uma manifestação humana no valor que é. E eu sempre pensei em todos os aspectos da minha vida sobre como posso fazer qualquer coisa de uma forma mais sustentável. No primeiro momento isso nem nasceu com uma consciência ecológica, porque tem 20 anos que eu faço isso. Nasceu de uma precariedade de orçamento. Mas já tem muitos anos que comecei um processo investigativo da materialidade das coisas que eu desenhava e aí abri mão de uma série de materiais que eu trabalhava. A indústria da cenografia é superpoluente. Ela constrói aquilo ali e depois? Lixo. E eu comecei a ficar histérica com isso. Quando tive minha primeira filha, tudo mudou. Mudou porque eu pensei: ah não, não dá pra ser mais assim porque eu acho que em algum momento vai ter uma guerra mundial por água. Não vai ter água pra todos. E eu não posso ser uma pessoa que está colocando uma vida no mundo e vai descarregar nele um grande "se vira aí" com o lixo!  Então aquilo começou a me dar um incômodo tão grande que eu parei de fazer cenários com plástico, madeira. E comecei a fazer uma investigação com papel.

E eu moro de aluguel a vida inteira, isso pra mim não é problema nenhum. E o fato de morar de aluguel não impede que a minha casa tenha a minha cara. Todas as casas que eu morei foram elogiadas "nossa como sua casa é aconchegante" e desde a segunda casa que eu moro, e já morei em várias, elas são sempre publicadas em veículos especializados em arquitetura. E eu não sou arquiteta, sou cenógrafa. Mas a estética faz parte da minha vida. É o jeito como eu lido com a vida. Então eu tenho que ter um quarto? Com cama, poltrona, luz? Mas por que não fazer isso de um jeito que eu me sinta pertencente, que eu me sinta à vontade, que eu me sinta conectada com as minhas raízes? A casa é uma pele. E eu passo muito tempo em casa. Eu trabalho dentro de casa, eu sempre recebi muita gente em casa. Então se meu maior tempo é passado dentro de casa, tem que ser agradável, gostoso. Então o Casa Vida Cenário nasceu dentro desse contexto, quando pensei: quem é o meu artista agora? Quem é o protagonista? 

Tem uma frase do escritor Jorge Luís Borges que diz que "a casa é do tamanho do mundo, ou melhor, é o mundo." Quando eu li essa frase foi o estalo para criar o Casa Vida Cenário. Vou atrás de quem quer contar sua própria história na sua casa, de quem quer se sentir representada nela. E aí nasceu o Casa Vida Cenário e nasce de fazer uma casa com a qual a pessoa se identifique e com as premissas que eu acredito e que trouxe do meu olhar já desenvolvido na cenografia.

F: Como você aplica na prática os conceitos de sustentabilidade nos projetos da Casa Vida Cenário?

G: A sustentabilidade no Casa Vida Cenário não está nesse lugar da arquitetura de construir do zero, esse é um outro papo. Quando eu falo da sustentabilidade no Casa Vida Cenário eu tô falando de exemplos como: por que você vai comprar novo se a gente pode garimpar um usado? Se vai fazer um móvel, por que não faz com madeira de demolição? Como é que você pode fazer um projeto de decoração com o menor impacto possível? Como faz a economia girar localmente? Se vai comprar um tecido e tem a oportunidade de comprar de uma mulher que faz tingimento com tinta natural e o dinheiro ainda circula de forma local, por que fazer de outro jeito? Vou sempre preferir alternativas como as que envolvem upcycling e economia circular, bem como o trabalho de artesãos do que ir num shopping de decoração e comprar uma poltrona carérrima para um cliente. Não é que eu não faça, mas só se for um pedido especial do cliente. Mas quem procura o Casa Vida Cenário já está conectado com essa nova forma, com essa maneira de fazer diferente. Cada vez mais pessoas estão despertando para o que está acontecendo com o planeta. Acabei de voltar de Nova York e no inverno estava fazendo 10 graus, sem neve. O que não é o normal do clima de NY. Não é possível que a pessoa vá sair de uma pandemia sem separar o lixo na sua casa. É o mínimo. Não é possível que a pessoa vá sair de uma pandemia sem repensar o seu consumo. Por que as pessoas precisam de tantas coisas? E da onde elas vêm? E qual seu impacto? 

Como a pessoa quer que o planeta mude se a gente não mudar? A gente não é nada para o planeta. O planeta vai ter uma hecatombe e vamos morrer todos e o planeta vai continuar. Ah, mas aí as pessoas podem pensar: o que muda o mundo é política pública. Sim! Mas a política pública é feita por pessoas. Se não tiver uma consciência individual para que a sua parte seja feita e que aquilo vá engrossando uma mudança de comportamento e aí sim que a política pública atue junto com isso, não tem mudança. E todas essas coisas impactam na casa.

A casa pra mim representa um estilo de vida. Ela conta sua história diante de um estilo de vida. A minha casa é basicamente garimpada porque eu entendo o mundo dessa forma. E isso não precisa ficar brega, cafona, ou com uma estética nanaueira (termo usado pra designar um estilo meio hippie largado). Na minha casa não tem nada muito caro, ela é um mix de coisas que eu vou levando de casa em casa. Por isso não faço nenhum móvel planejado, faço móveis soltos, que eu possa levar. Eu sei que vou ter um impacto, mas como posso diminuir esse impacto ao máximo? 

Minha casa é cheia de plantas, e nesse apartamento em especial tem mais plantas ainda, porque me mudei de um menor e escolhi preencher os espaços com plantas. E elas me ajudaram a manter a sanidade mental durante a pandemia. Vejo muitos amigos tomando remédios tarja preta, cuja saúde mental ficou muito prejudicada na pandemia. Eu me ancorei nas plantas e na espiritualidade para me manter centrada e sã nesse momento. E funcionou! 

casa vida cenário
Gigi Barreto cuidando das plantas na sua varanda (Foto: divulgação)

F: Quais os pilares do seu trabalho hoje?

G: A sustentabilidade, a memória afetiva, a ancestralidade e a economia circular.

F: E como você aplica esses pilares nos projetos?

G: Na prática é garimpando, é por exemplo comprando uma poltrona que foi garimpada, convidando uma artesão que vai tingir manualmente o tecido para reestofar, depois vai para um estofador que vai estofar. Você tem ali 3 pessoas envolvidas em um item que não foi comprado em uma loja e que foi retirado do lixo, então é desse tipo de responsabilidade que eu tanto falo.

Apartamento assinado pela Casa Vida Cenário no Rio de Janeiro (Foto: divulgação)

F: E por que você acha tão difícil que mais decoradores façam projetos com esses pilares?

G: Acho que acesso à informação é uma das questões. Por isso eu disponibilizo todos os meus contatos de forma aberta no Instagram, criei até um destaque para isso. Muita gente não sabe como fazer e vai para o mais prático: entrar em lojas grandes e ver o que está ali. Outra coisa que é bem delicada de falar, está relacionada com o consumo como um todo. Acho que as pessoas se enchem de coisas porque elas estão muito vazias por dentro, então quando eu vejo cenas como a que vi agora em Nova York, eu fico chocada. Nesta viagem queria comprar um iphone para poder fazer os vídeos da Casa Vida Cenário, já que toda vez que fazemos os vídeos eu preciso alugar uma câmera. Pesquisei e vi que o iphone me atenderia. Liguei para diversas loja da Apple lá, e não tinha nenhuma loja que tivesse o iphone 13 para comprar. É um grande vazio, é muita falta de assunto, é muita falta de espiritualidade. E a arquitetura caminha nesse mesmo lugar. É difícil olhar pra dentro, para a casa interna. Se você quer fazer uma casa que represente a sua história, você vai ter que estar disponível para abrir a sua vulnerabilidade para alguém (a arquiteta/decoradora no caso) e ao mesmo tempo, essa pessoa precisa estar disponível para abrir a sua vulnerabilidade também para poder fazer junto. Eu tenho que estar junto no processo com você, as duas num mesmo lugar para que as duas se sintam à vontade. Como no seu caso, que me disse que achava que o projeto não estava com a sua cara, que estava muito escuro, e eu tenho que ter a humildade de entender que não acertei, e de caminhar para fazer isso funcionar da melhor forma possível. Isso envolve uma escuta profunda. É uma relação que tem que ser muito humana e que você tem que estar disponível para trocar com o outro lado. É uma troca. Os saberes precisam ser trocados. Fico pensando em que momento da humanidade deu ruim para que os saberes parassem de ser trocados. A internet pode suprir essa falta. A minha experiência recente de ter neste último ano uma rede aberta, me fez ver esse senso de comunidade de realmente compartilhar as coisas. O Casa Vida Cenários só cresceu porque eu tenho essa disponibilidade interna de compartilhar tudo o que as pessoas me perguntam. Do nome do artesão à tinta que usei em um projeto. E de uma forma mais profunda, a gente enquanto comunidade foi perdendo o senso do valor. Tudo não pode ser monetizado, tudo não pode ser precificado. Temos que conseguir compartilhar pelo senso de comunidade, pelo senso de estarmos em um coletivo. Então talvez, através dessa nova rede, se uma grande quantidade de pessoas inspiracionais conseguir criar essa nova consciência do que é bacana, o que é legal, do que é o luxo, a gente consiga mudar alguns paradigmas. No Casa Vida Cenário tenho uma brincadeira de compartilhar: luxo é… e recebo muitas mensagens diretas de pessoas dizendo o quanto essas reflexões impactaram seus olhares. Se isso impactou meia dúzia de pessoas, acho que já valeu. Resgatar os valores humanos é o grande lance para a gente conseguir passar por muitas e muitas pandemias que virão. 

F: Os arquitetos e decoradores podem ser de certa forma essas pessoas que influenciam seus clientes a ter esse despertar, já que quando são contratados, se estabelece uma relação de confiança e de quem contrata confiar na opinião e na visão daquele profissional que vai fazer o projeto de um lugar tão especial como uma casa, por exemplo. E o que você diria para decoradores e arquitetos que estão abertos para seguir uma linha mais sustentável no seu trabalho?

G: O passo 1 é ter humildade o suficiente para reconhecer que você não sabe, e vai ter que correr atrás para formar uma rede. Ter também humildade suficiente para reconhecer que não é sobre seu gosto pessoal, é sobre a casa da Fernanda, por exemplo. E se eu já tenho a minha casa, como é a casa da Fernanda? Deixa eu atravessar com a  Fernanda essa casa. Mas eu posso atravessar essa casa diante de valores nos quais eu acredito, e eu não vou negociar meus valores. Eu tenho que estar disponível para fazer a sua estética, mas diante dos meus valores. 

Falar que não sabe e procurar respostas é humano. E eu não sou uma corporação, sou uma pessoa. 

É ainda sobre ouvir. A grande beleza está nessa troca, os dois lados estarem disponíveis para ouvir, escutar de verdade. E o profissional tem que correr atrás de achar onde estão os saberes ancestrais. Onde estão essas pessoas? E hoje com a internet isso facilita muito. Acabamos de entregar um apartamento em Nova York e mais da metade dele foi garimpado pela internet. A gente tem essa grande potência nas mãos, então saiba usar com responsabilidade o tamanho do que o próprio homem inventou. 

F: E o que é luxo para você?

G: Luxo pra mim é viver rodeada de uma troca de afetos. É consciência. Luxo pra mim hoje virou serenidade, uma quietude para eu não ser engolida. 

E a coisa mais sexy pra mim hoje virou a coerência. Quando você encontra alguém que fale coisas que estão concomitantes com o espírito do mundo atual, você encontrou um elixir ali! Tem vozes que estão ali ecoando e fazem com que você não se sinta tão sozinha. Ter um Caetano Veloso, uma Eliane Brum, é isso. 

Espero que você que chegou até aqui tenha se inspirado com esse papo, e te sugiro que dê um mergulho profundo no Instagram da Casa Vida Cenário, onde a Gigi generosamente mostra os antes e depois e os processos artesanais que ancoram seus projetos. E ainda disponibiliza sua lista de contatos. Porque é criando novos paradigmas que vamos criar novos futuros possíveis!

Que 2022 seja pra você um ano mais sustentável, com menos lixo, e mais sonhos. 

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