24.08.2020
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Nossa rotina mascarada

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24.08.2020
Durante uma pandemia global, que já custou a vida de quase um milhão de pessoas ao redor do mundo, enquanto o povo se estapeia lá fora, eu me agarro à minha máscara. 
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Sempre fui apaixonado por rotina

Por treze anos tive um bulldog francês adorável cuja mera sobrevivência dependia de uma série de hábitos meus. Quem tem bicho sabe como é. Acorda, alimenta, vai à rua, brinca, desce de novo, dá um petisco, joga bola, leva para fazer xixi, dorme e no dia seguinte faz tudo igual. Com o passar do tempo, o mundo lá fora mudava – estações, empregos, presidentes – mas nosso cotidiano seguia inabalável. 

A obrigação de levá-lo para passear de manhã cedo acabou tornando-se um dos grandes prazeres da minha vida. Há algo de mágico em ver a cidade acordando. O cheiro de pão fresco, vizinhos regando plantas, donos de barracas de rua arrumando suas minivitrines, pais levando seus filhos à escola, passarinhos distribuindo “bons dias” – ou, aqui, “good mornings” – moradores varrendo a calçada e uma energia quieta que abastece nossa alma para aquilo tudo que o dia inevitavelmente vai trazer. 

Miles, meu cachorro, faleceu alguns anos atrás, no entanto, minha caminhada matinal resiste firme e forte até hoje. Mesmo quando viajo, dou um jeito de acordar cedo só para observar como aquele lugar desperta. 

rotina mascarada
(Arquivo: Pedro Andrade)

Em NY é diferente. Bem, ao meu ver, tudo em NY é diferente. Minha relação com a Capital do Mundo é absolutamente humana. Sinto saudade de Manhattan como a gente sente saudade de uma pessoa amada, defendo-a a qualquer custo e conto a “nossa história” com o fervor com o qual descrevo uma grande paixão. Talvez por isso minha rotina na Big Apple tenha o gosto singular de envelhecer ao lado de quem a gente escolhe para a vida. Desde 1999, quando me mudei para cá, passamos por muitos altos – pessoas interessantes, exposições memoráveis, caminhadas pelo Central Park, ostras às margens do Rio Hudson, beijos no Washington Square Park, jazz no Joe’s Pub, martinis no Dante, música no Boom Boom Room e a Quinta Avenida toda enfeitada no mês de Dezembro – e baixos – 11 de Setembro, Furacão Sandy, Crise de 2008 e, é claro, a pandemia

rotina mascarada
(Arquivo: Pedro Andrade)

Nesse exato momento, as ruas de Manhattan transpiram esperança. Restaurantes, lojas, bancos e parques se adaptaram de forma eficaz e disciplinada, no entanto, o COVID-19 foi capaz de mudar até aquilo que sempre me pareceu inabalável. O cheiro do café fresco sumiu, as escolas ainda estão fechadas, os mercados agora abrem mais tarde, o vendedor de rua sumiu, os pássaros voam em silêncio, as calçadas pertencem aos locais e as máscaras se tornaram um item obrigatório.

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(Arquivo: Pedro Andrade)

Infelizmente, essa ferramenta criada para nos proteger, virou um item politizado que burramente divide o planeta.

Nos Estados Unidos, o uso da máscara virou sinônimo de falta de liberdade imposta pela esquerda. É difícil imaginar um argumento mais descabido, no entanto, cá estamos. Políticos ignoram mais de 170 mil mortes enquanto a comunidade científica é injustamente difamada por membros de um culto nocivo. Não seguir normas médicas em pleno século XXI não é ideologia, mas sim, o que chamo de autosabotagem irresponsável.

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(Arquivo: Pedro Andrade)

A ideia de permitir que uma instituição pensasse por mim sempre me gerou desconforto, por isso, não tenho partido, não tenho religião, não faço parte de torcida organizada e recuso o convite de qualquer clube exclusivo. Prezo minha autonomia e abrir mão do meu raciocínio independente seria um preço alto demais em qualquer circunstância. Com isso dito, durante uma pandemia global que já custou a vida de quase um milhão de pessoas ao redor do mundo, enquanto o povo se estapeia lá fora, eu me agarro à minha máscara. 

Além de ser uma proteção, é um ato de generosidade com o próximo e respeito por aqueles que lamentavelmente perderam a própria vida nesse período tão difícil.

O uso da máscara não é uma novidade. Em 1897 os cirurgiões Johan Mikulicz e Paul Berger decidiram usar uma gaze no rosto com o objetivo de proteger seus pulmões de doenças facilmente transmissíveis dentro do hospital parisiense no qual trabalhavam. O hábito foi adotado no mundo todo no início do século XX durante a Gripe Espanhola, que por sinal, matou mais de 50 milhões de pessoas.

Este modelo primário era relativamente eficaz na época, mas não se compara às máscaras que usamos hoje em dia. As N95, na verdade, surgiram em 1958 quando uma americana chamada Sara Little Turnboll foi contratada para criar um sutiã com um tecido novo que permitia maior circulação de ar quando em contato com a pele. Como a designer na época era responsável por três parentes idosas (duas tias e a própria mãe), ela decidiu usar este material revolucionário na criação de uma máscara cirúrgica em vez do acessório feminino. Dessa forma, poderia visitá-las no hospital com mais conforto e tranquilidade.

A invenção virou item obrigatório em clínicas e hospitais no mundo todo do dia para a noite.

Na Ásia, graças a outras pandemias nas últimas décadas, o uso de máscaras é algo incorporado na sociedade. Para eles, a resistência ao uso de uma N95 é equivalente a um motorista que insiste em dirigir bêbado. Simplesmente não faz o menor sentido.

O sudeste asiático é um fenômeno à parte. Países com densidade populacional alta, como Tailândia, Camboja, Myanmar e Laos, registraram números microscópicos de mortes. O Vietnã, com mais de 90 milhões de habitantes, acaba de registrar a primeira morte por COVID-19 na semana passada, a Tailândia, com seus 70 milhões, perdeu menos de cinquenta cidadãos para o coronavírus. De uma maneira geral, culturalmente, eles se encostam menos, não apertam mãos, beijo no rosto nem pensar e muitos de seus hábitos diários acontecem ao ar livre, o que dificulta a transmissão do vírus. 

Além disso tudo, é claro que a resposta governamental foi rápida e eficaz. Uso de máscara obrigatório, distanciamento social em todas as circunstâncias possíveis e fechamento de fronteiras logo no início da pandemia. Ainda assim, a comunidade científica não descarta a possibilidade da contribuição de um fator genético que tornaria essas populações menos vulneráveis ao coronavírus. Só o tempo dirá. 

Outra questão inusitada é o sucesso absoluto de vários países africanos. Ruanda, por exemplo, um país pobre e problemático com mais de 13 milhões de habitantes, registrou apenas sete mortes por COVID-19. Mais uma vez, liderança responsável fez toda diferença. Nessas horas fica claro que a escolha de um presidente não deveria ser baseada em número de seguidores no Twitter, carisma no palco, promessas vazias ou mero magnetismo. Da mesma maneira que um médico, um advogado, um piloto de avião ou um diplomata precisam conquistar aquele cargo ao longo de muitos anos, líderes políticos deveriam demandar o mesmo nível de expectativa e preparo. 

Outro motivo pelo qual parte do continente africano vem surpreendendo o resto do planeta durante a pandemia tem a ver com a quantidade de desgraças pelas quais os povos em questão já passaram – ebola, AIDS, malária, terrorismo, genocídios, fome, dentre outras. A ideia de mais uma carnificina é o pior dos pesadelos. 

De certa forma, a qualidade de vida da qual muitos de nós desfrutamos no Brasil e nos EUA no último século, pode sim, ter nos dado a perigosa ilusão da invencibilidade. Talvez a maior das lições pós-pandemia seja a modéstia, em outras palavras, a exata noção do quão frágeis nós somos perante algumas circunstâncias. 

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(Arquivo: Pedro Andrade)

Nova York, por ter sido o epicentro da pandemia logo no início dessa catástrofe, presenciou meses pontuados por ambulâncias, caminhões que viraram frigoríficos de corpos, mais de oitocentas e cinquenta mortes por dia e as decisões inimagináveis que médicos tiveram que tomar graças à superlotação dos hospitais. Por essas e por outras, nós, nova-iorquinos, vamos pular a briga ideológica pelo uso de máscaras. 

Até que a vacina chegue, minha N95 virou hábito, assim como o passeio dos nossos cães de cada dia. 

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  1. Nunca tinha lido nada escrito por você. Seu texto é perfeito, simples. Uma delícia de ler.
    Além de traduzir o que penso.
    Parabéns!

  2. Você conseguiu transmitir responsabilidade e coerência, o que mais precisamos nesse momento. Obrigada.

  3. Sensatas palavras! Parabéns pelo texto e expressão. Vamos seguir as orientações científicas e buscar o melhor para o mundo, pessoal e coletivo. Convido, desde já, você para um café, assim que esse momento de distanciamento amenizar. ❤️☕️

  4. Maravilhoso e real este texto
    Mas vindo do Pedro, eh o que se espera. Humanidade e coerência !

  5. Reflexão maravilhosa que compartilho integralmente. Máscara sim! É respeito a si e aos outros.

  6. Fátima Vasconcelos Nunes - Jornalista editora do site Viajar Travel News disse:

    Excelente texto. Parabéns, colega!

Pedro Andrade
Colunista
Colunista

Vivendo em Nova York há 21 anos, o jornalista e apresentador carioca, Pedro Andrade,...

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