23.06.2022
Avaliação 
Avalie
 
Sem votos
Avaliar
Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

Que Horas Ela Volta? – Uma reflexão sobre espaços de segregação

 minutos de leitura
calendar-blank-line
23.06.2022
As colunistas Carol Bernardo e Tamires de Alcântara escrevem sobre o filme de Anna Muylaert, estrelado por Regina Casé, em que a arquitetura, mais do que cenário, é quase personagem
minutos de leitura

Há pouco mais de um ano marcando presença por aqui, nos sentimos à vontade para fazer uma indicação a você, querido leitor. Em uma conversa que tivemos dias atrás, numa daquelas nossas idas à cafeteria, lembramos de alguns filmes que nos marcaram. Daqueles que nos deixam com a “pulga atrás da orelha” por vários dias, que precisam ser “digeridos” com muita paciência, sabe? Que horas ela volta? é um deles. 

Para ouvir o artigo completo, clique no play abaixo:

Um filme brasileiro, do gênero drama, lançado no ano de 2015, escrito e dirigido por Anna Muylaert. Conta a história de Val, uma mulher pernambucana que deixa sua filha e sua terra natal para trabalhar em São Paulo como babá e empregada doméstica.

família reunida na mesa
Jéssica chega a São Paulo e é apresentada aos patrões da mãe. Da esquerda para a direita, Lourenço Mutarelli (Carlos), Regina Casé (Val), Camila Márdila (Jéssica), Karina Teles (Bárbara) e Michel Joelsas (Fabinho). Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert, produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

Impossível falar do filme sem citar as três personagens principais e as respectivas atrizes que lhes deram vida. A atriz Regina Casé é quem interpreta Val e constrói uma persona amorosa, dedicada, 100% focada nas suas atividades profissionais. Val abre mão de seus sonhos e interesses pessoais em detrimento do cuidado da casa e da vida dos patrões, tudo para proporcionar uma vida melhor para a filha.

A atriz Camila Márdila dá vida à Jéssica, a filha de Val que, depois de 10 anos longe da mãe, se muda para São Paulo para prestar o vestibular mais concorrido do país, o da USP.  Karine Teles é Bárbara, a patroa, uma socialite totalmente desligada dos problemas da família, preocupada com sua vida nos holofotes, aparições em revistas e eventos sociais.

A construção das personagens, falas e fotografia do filme são muito cuidadosas. Na sutileza de cada diálogo e posicionamento de câmeras temos um retrato do que é ser empregada doméstica no Brasil: exclusão e subordinação. As relações de poder e conflito social são simbolizadas na linguagem, no discurso e também na espacialidade com que o filme é estruturado.

Que horas ela volta?
Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

Assistindo atento aos detalhes, você observa que muitas das cenas são gravadas direto da cozinha, sob o enquadramento de uma pequena fresta da porta entreaberta. Por conta disso, o primeiro nome do filme era A Porta da Cozinha: um elemento físico que simboliza o distanciamento social entre as duas realidades. 

Val tem sua vida resumida àquele espaço da cozinha e ao seu quarto, enquanto a vida dos patrões acontece além das barreiras físicas da residência. São recorrentes as falas onde Bárbara relembra a funcionária de qual é o seu lugar e quais ambientes são de uso exclusivo dos patrões, a rígida divisão entre “os que servem” e “os que são servidos”.

regina casé que horas ela volta?
Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

Embora tenhamos crescido na classe C, nossa realidade é bem diferente da narrativa envolvendo as personagens: nossas mães tiveram a oportunidade de trabalhar próximas a nós, acompanhando nosso crescimento, com uma configuração familiar que nos proporcionou acolhimento e alguns privilégios, algo muito distante do que vivencia boa parte das famílias brasileiras.

O número de mães-solo registrado no Brasil é, atualmente, o mais expressivo dos últimos cinco anos. De acordo com o IBGE, o país tem mais de 11 milhões de mulheres que são as responsáveis únicas pelos cuidados de suas filhas e filhos, sendo que a maioria dessas famílias está abaixo da linha da pobreza. Com baixa instrução, encontram no trabalho doméstico a oportunidade de melhoria da vida familiar, mesmo que essa chance signifique ausência e distância.

Assim, milhares de mulheres perdem o crescimento de seus filhos para acompanharem o crescimento dos filhos das patroas em tempo integral. O nome do filme resume bem essa situação: Que horas ela volta? é a pergunta sem resposta.

Em regra, a classe média alta entende que o empregado doméstico é fundamental para a manutenção da lógica familiar. Além de simbolizar poder e status social, é o trabalho doméstico que garante a alimentação, o zelo com as roupas, a limpeza dos ambientes e o cuidado de crianças e idosos.

É recorrente ouvir que a empregada é “parte da família”, depois de tantos anos convivendo e criando os filhos dos patrões. Entretanto, quando as relações extrapolam os vínculos empregatícios o posicionamento do patrão sobre “quem dá ordens” e “quem recebe ordens” é bem claro.

A mudança de Jéssica para São Paulo com o intuito de somente estudar causa estranheza nos patrões: Como uma menina, aparentemente sem instrução, teria a ousadia de estudar na mesma universidade que o filho da patroa? Ela não veio para trabalhar?

Mãe e filha pertencem ao mesmo contexto, mas em posições e gerações diferentes. Val cresceu sem oportunidade e encontrou na mudança de estado uma maneira de melhorar a situação da família; a filha encontra essa oportunidade nos estudos, afinal, o acesso ao ensino superior significa a possibilidade de ascensão social.

Jéssica é frequentemente taxada de arrogante pelos patrões, que estão acostumados ao modo subserviente e totalmente condescendente dos funcionários da casa. A jovem acha um absurdo as regras pré-estabelecidas pela patroa da mãe: a separação entre as comidas que podem ser consumidas por patrões ou funcionários, as cadeiras em que podem se sentar, os ambientes que podem ser acessados, dentre outras restrições.

Essa construção socioespacial da casa burguesa está intimamente relacionada às barreiras e divisões sociais, sendo desde sempre setorizada em área social, íntima e de serviço. A área social é destinada aos moradores e às visitas, enquanto a área íntima é o espaço privativo dos moradores, por onde os empregados circulam somente para servir e limpar. Na área de serviço estão todos os ambientes que garantem que a casa funcione: cozinha, lavanderia, estendal e o dormitório de empregados.

roupa estendida varal
Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

Enquanto os patrões têm uma grande área de lazer com piscina e jardim, Val aproveita seu momento de descanso em cantinhos que lhe cabem: entre as roupas no estendal, encostada na pia da cozinha ou no seu pequeno quarto. Essa organização da casa é uma herança do período escravocrata e perpetua a lógica de servidão na sociedade brasileira.

A piscina é um dos elementos da arquitetura importantes na construção dessa narrativa de segregação: em certa cena, Bárbara manda esvaziá-la depois que a filha da empregada, por um descuido, acaba caindo na água – “Houve uma infestação de ratos”, diz a personagem interpretada por Karina Teles.

Quem tem direito aos espaços de lazer e ócio?

regina casé no filme que horas ela volta?
Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

A luta do nordestino por um espaço, seja na cidade, na casa ou no ensino superior, é representada pela personagem de Jéssica de maneira muito assertiva: ao aceitar os convites para ocupar o quarto de hóspedes e se sentar na mesa de jantar na casa dos patrões da mãe; o foco para conseguir uma vaga na FAU-USP, um curso extremamente elitizado; até o enfrentamento aos mandos da patroa.   

FAU-USP
Imagem da FAU-USP. Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

Um fluxo contrário aos processos de gentrificação, apresentado no enredo pelo exemplo de reestruturação do Largo da Batata, uma região historicamente marcada pela dinâmica comercial de famílias nordestinas que, após a “revitalização” da região, são expulsas para a periferia, onde os recursos são escassos, as condições de moradia são precárias e o acesso ao trabalho exige horas de deslocamento.

cena filme que horas ela volta?
Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

Enquanto Val e Jéssica têm dificuldades para encontrar uma casa para alugar, os patrões ostentam um apartamento vazio em pleno centro de São Paulo, no Copan, com toda a infraestrutura e serviço disponíveis – um dos milhares de imóveis vazios, frutos da especulação imobiliária.

cena do filme Que horas ela volta?
Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

Com a luta pelo direito das trabalhadoras, que culmina na sanção da PEC das domésticas em 2015, a classe média é obrigada a se adequar aos novos tempos – a partir de então, ter uma empregada doméstica diariamente ficou inacessível para esse público e é mais frequente que contratem o serviço alguns dias por semana.

Assim, o “quartinho da empregada” fica cada vez mais raro no programa da casa brasileira, embora ainda faça parte das casas e apartamentos de alto luxo, para gente que acha fundamental ser servido 24h, em condições deploráveis: mal iluminado, mal ventilado, disfarçado de depósito para fins de aprovação do imóvel.  

Esse momento mais esperançoso no futuro é retratado quando Val deixa de morar na casa dos patrões e finalmente se sente “em casa” no imóvel simples que aluga na periferia da cidade, o espaço disponível para a classe trabalhadora dos grandes centros urbanos.

cena do filme que horas ela volta?
Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

O Brasil vivia uma outra realidade na época em que o filme foi gravado: o otimismo fazia-se presente pela redução das desigualdades e ampliação do acesso ao ensino superior. 

Embora o contexto atual não seja o mais favorável, lutamos para que as mudanças nas condições de trabalho e na estrutura social possibilitem que cada vez menos pessoas precisem se submeter aos formatos de moradia dos patrões. Em que as famílias tenham acesso aos serviços de arquitetura e possam construir seus próprios espaços, com infraestrutura digna e com qualidade. 

cena do filme que horas ela volta
Que horas ela volta? Direção: Anna Muylaert. Produção: Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015

“Que horas ela volta?” é um resumo da complexa dinâmica vida social brasileira ao longo do território, seja no âmbito da casa ou da cidade. Assistir ao filme é sempre um convite à reflexão!

Serviço
Que horas ela volta está disponível nos serviços de streaming: Netflix, Telecine Play e Globoplay.

Compartilhe
Avaliação 
Avalie
 
Sem votos
VOLTAR
ESC PARA FECHAR
Minha avaliação desse conteúdo é
0 de 5
 

Que Horas Ela Volta? – Uma reflexão so...

Que Horas Ela Volta? – Uma reflexão sobre espaços de segregação

  Sem votos
minutos de leitura
Em análise Seu comentário passará por moderação.
Você avaliou essa matéria com 1 estrela
Você avaliou essa matéria com 2 estrelas
Você avaliou essa matéria com 3 estrelas
Você avaliou essa matéria com 4 estrelas
Você avaliou essa matéria com 5 estrelas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Muio bom o artigo! Empregada doméstica “é parte da família”, mas não está no testamento “da família”. E os “quartinhos de empregada”???

Beiral Estúdio
Colunista
Colunista

Arquitetas e urbanistas formadas pela Universidade Federal de Uberlândia, Carol Bernardo e Tamires de...

Conhecer artigos



Não perca nenhuma novidade!

Assine nossa newsletter para ficar por dentro das novidades de arquitetura e design no Brasil e no mundo.

    O Archtrends Portobello é a mais importante fonte de referências e tendências em arquitetura e design com foco em revestimentos.

    ® 2024- Archtrends Portobello

    Conheça a Política de Privacidade

    Entenda os Termos de Uso

    Veja as Preferências de Cookies