25.07.2022
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Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus em noite de autógrafos, em 1960 (Foto: Acervo UH/Folhapress)

Dia da Mulher Negra e o legado de Carolina Maria de Jesus

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25.07.2022
Em celebração ao Dia da Mulher Negra, as arquitetas Carol Bernardo e Tamires de Alcântara prestam uma emocionante homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus - e, ainda, abordam urbanismo, relacionando à formação das favelas com a abolição da escravatura
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Hoje, 25 de julho, é comemorado aqui no Brasil o Dia da Mulher Negra e Dia de Tereza de Benguela. Inspirada no Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, instituído em 1994, a data reforça a luta e resistência da mulher negra e os enfrentamentos ao racismo e à discriminação social e de gênero.

Para ouvir o artigo completo, clique no play abaixo:

Mulheres negras, latinas e caribenhas são a raiz da resistência em sociedades que sistematicamente tentam nos silenciar pela exclusão, solidão, genocídio, feminicídio, encarceramento, pela falta de acesso e por tantas outras violências estruturais e cotidianas. Um dia importante para reforçarmos nossa existência e lembrar de tantas mulheres admiráveis.

Durante a produção desse texto, a angústia nos invadiu por abordarmos uma história que, mesmo escrita há tantos anos, faz-se presente na vida de milhares de mulheres negras da atualidade. O sentimento de resistência também se manifesta ao enxergarmos que, apesar dos passos lentos, muitas novas histórias são contadas da perspectiva da mudança, graças às mulheres negras que vieram antes de nós dispostas a movimentar as estruturas, dentre elas, Carolina Maria de Jesus.

Carolina Maria de Jesus na antiga Favela do Canindé
Carolina Maria de Jesus na antiga Favela do Canindé (Foto: Acervo Audálio Dantas)

A escolha por trazer como exemplo Carolina Maria de Jesus é uma homenagem e um protesto. Em tantos outros textos, vocês puderam enxergar parte do que acreditamos e pensamos. Aqui, entenderão um pouco do que somos e sentimos. Ser mulher negra, principalmente no Brasil, ainda é muito exaustivo e, no que diz respeito a privilégios, temos um longo caminho a percorrer.

Carolina nasceu em 1914, na cidade mineira de Sacramento. Mudou-se para São Paulo ainda jovem, onde trabalhou como empregada doméstica e catadora. Para enfrentar os dias difíceis, encontrou na literatura e na escrita um respiro para a dura realidade. Moradora da favela do Canindé com seus três filhos, passava os dias catando papel e metal, juntando o dinheiro para alimentar a casa, vestir as crianças e sobreviver. Mesmo com o trabalho incessante, foram muitos os dias onde Carolina relatou fome e desesperança.

Mas, o pobre não repousa. Não tem o previlegio de gosar descanço.” (16 de julho de 1955)

Carolina Maria de Jesus (Foto: UFMG/divulgação)
Carolina Maria de Jesus e seus filhos, Vera Eunice, João e José Carlos (Foto: UFMG/divulgação)

Quarto do Despejo – Diário de uma favelada, sua obra mais conhecida e da qual somos grandes admiradoras, é um compilado dos dias da autora. Ao longo deste artigo escolhemos alguns trechos que nos marcaram, extraídos do livro assim como foram escritos: em uma linguagem simples e objetiva, sem rodeios, totalmente expressivos e intensos. 

Dia após dia, a rotina de Carolina se resumia a enfrentar a fila da comunidade para encher sua lata de água, preparar o café para as crianças, sair com a filha caçula para catar papéis e metais, trocá-los por cruzeiros, preparar o almoço, varrer o barracão, cuidar das crianças – e, em sua hora de descanso, Carolina escrevia.

Pensei: eu não vim ao mundo para esperar auxilios de quem quer que seja. Eu tenho vencido tantas coisas sosinha, hei de vencer isto aqui!” (8 de novembro de 1958)

A descrição minuciosa e a simplicidade com que Carolina conta sobre o seu dia nos aproxima de sua vida. No relato de cada linha conseguimos enxergar amigas, tias, mães… existem milhares de Carolinas por aí.  

Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem.” (19 de julho de 1955)

Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus em noite de autógrafos, em 1960 (Foto: Acervo UH/Folhapress)

A literatura da escritora escancara as contradições sociais brasileiras com riqueza de detalhes, profundidade, sensibilidade e crítica. Não por acaso, a obra de Carolina foi silenciada pela censura durante a ditadura militar (1964 – 1985) e continuou sendo apagada por editoras e pela academia mesmo após a redemocratização do país.

Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhável escrever a realidade” (9 de agosto de 1958)

…Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.” (20 de maio de 1958)

O nome do livro refere-se à maneira como Carolina chamava a Favela do Canindé, para ela um lugar onde tudo era desprezado, escondido, para nunca ser visto ou visitado, o oposto do centro da cidade, com gente bem vestida, elegante e sorridente.

Extinta entre os anos de 1960 e 1961, depois de fortes chuvas que inundaram a região, o Canindé foi constituído em uma enorme área da prefeitura, às margens do rio Tietê. Em alguns trechos, Carolina descreve o cheiro forte que preenchia o local, os barracões simples e frágeis de tábua, a água que invadia o telhado sempre que chovia e o lamaçal que virava a rua principal.

Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.” (20 de maio de 1958)

Carolina Maria de Jesus na antiga Favela do Canindé (Foto: Acervo Audálio Dantas)

Com a abolição da escravatura em 1888, a população negra liberta passa a ocupar as áreas mais precárias e marginalizadas da cidade, recebe como oferta os piores ofícios ou nenhuma oportunidade de trabalho, pouco ou nenhum acesso à educação. Tais fatos estão diretamente ligados à formação das favelas e à ocupação urbana consolidada nas grandes cidades da américa latina.

E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”

Às mulheres negras, afetadas particularmente pelas opressões de gênero, foram destinados o trabalho doméstico e a exploração sexual, além das dificuldades singulares daquelas que são mães: a realidade retratada por Carolina.

Quando procura uma preta é pensando explora-la. Eles pensam que são mais inteligentes do que os outros. O purtuguês disse para a Fernanda que lhe dava um pedaço de fígado se ela lhe aceitasse. Ela não quiz.” (15 de julho de 1958)

A atriz Ruth de Souza interpretou Carolina Maria de Jesus em peça de Edy Lima, em 1961 (Foto: Divulgação)

Conhecer a literatura de Carolina é conhecer a história de mulheres negras, brasileiras, trabalhadoras e mães. Por um lado, a compaixão, a fé e a coragem; por outro, o sofrimento e a desilusão. Se há tantos anos nos pintam como fortes e guerreiras, Carolina consegue mostrar a fragilidade, a sensibilidade e a humanidade que há tempos nos foram tiradas. Seus dias anotados no papel são um manifesto, um grito de socorro.

Quando passei perto da fabrica vi varios tomates. Ia pegar quando vi o gerente. Não aproximei porque ele não gosta que pega. Quanto descarregam os caminhões os tomates caem no solo e quando os caminhões saem esmaga-os. Mas a humanidade é assim. Prefere vê estragar do que deixar seus semelhantes aproveitar.” (01 de julho de 1958)

Obviamente, não podemos separar a escrita de Carolina de sua origem social, etnia e gênero, principalmente porque ela destoa da maioria dos escritores reconhecidos, evidenciando a distância existente entre a literatura publicada e a massa. Porém, é fundamental destacar que ela é um grande nome da literatura apesar de toda a exploração que sofreu.

Carolina representa a coragem de se apropriar da língua portuguesa, da leitura e da escrita. A ousadia de se apresentar como escritora em um período em que as classes populares já produziam seus textos e se expressavam através deles, mas que o material quase nunca chegava a ser impresso e publicado. Uma exclusão muito além da econômica.

…Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. […] Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta.” (16 de junho de 1958)

A sua obra nunca foi esquecida pelo movimento social negro. Carolina é reconhecida por escritoras e escritores negros e periféricos, em slams, saraus e na produção de poetas e compositores por ela influenciados. Escritores que dinamizam o uso da língua além da norma padrão, criando uma poética própria e, mesmo que os textos e canções não falem diretamente de Carolina, são parte do seu legado.

Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.” (06 de julho de 1958)

O merecido reconhecimento oficial da sua produção finalmente vem acontecendo. Em 2021, a Universidade Federal do Rio de Janeiro lhe concedeu o título de Doutora Honoris Causa. Acontecimentos recentes, como a obrigatoriedade do estudo da cultura afro-brasileira nas escolas e as políticas afirmativas de ingresso à universidade, são fatores que colaboraram para o maior interesse em obras de autoria negra e de outras minorias, permitindo que cada vez mais pessoas conheçam a história e a obra de Carolina Maria de Jesus.

As experiências das mulheres negras da diáspora só não foram esquecidas graças às próprias mulheres negras, em seus movimentos organizados, coletivos, escritos, danças, teatro, pesquisas, intelectualidade e os diversos espaços que ocupamos, criamos e fortalecemos por nós mesmas. 

Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações.” (23 de junho de 1958)

Graças a Carolina e a tantas outras que vieram antes de nós, hoje temos a oportunidade de escrever o que sentimos, pensamos e vivenciamos. Ocupar um espaço como esse em que estamos é uma revolução, temos a consciência de quem representamos. Às mães, amigas, primas, tias e colegas, obrigada. Resistiremos o quanto pudermos!  

…A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. […].” (28 de maio de 1959)

Obrigada a todas as Terezas e Carolinas. Hoje é dia de celebrar a potência de mulheres negras que vieram antes de nós e também abrir caminho às muitas outras que estão por vir.

Pedimos a nossos leitores que citassem mulheres negras que os inspiram, aqui estão elas:  Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis, Benedita da Silva, Lair Miguel, Bell Hooks, Ivonete de Lourdes Nunes, Lélia Gonzales, Lilian Santos, Taís Araujo, Ana Carolina de Alcântara e Marta dos Santos. 

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  1. A minha admiração por vocês só cresce a cada dia, como profissionais, como mulheres autênticas que inspiram tantas outras. Fiquei extremamente emocionada ao ler esse texto. Espero que a leitura alcance e sirva de inspiração a tantas outras mulheres para que se fortaleçam na luta de todos os dias. Parabéns Carol e Tamires por serem quem são!

  2. Que texto maravilhoso! Parabéns, meninas, por nos proporcionarem tanto conteúdo de qualidade e por olharem a arquitetura por uma ótica mais social e humana! Vocês são demais!

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