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SAO PAULO, BRAZIL, 2005. The Parais—polis favela (Paradise City shantitown) borders the affluent district of Morumbi in S‹o Paulo, Brazil (Foto: Tuca Vieira)

Casa para todos?

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Nos últimos anos, o abismo social que separa os brasileiros só aumentou e a arquitetura e o design não poderiam deixar de espelhar essa realidade.
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Após os anos 1950, era muito frequente o número de especialistas estrangeiros que aportavam no Rio de Janeiro para visitar as obras de arquitetura que consagraram o modernismo brasileiro. Entre os objetos de desejo estavam a sede do Ministério da Educação e Saúde, criada pela equipe de Lucio Costa, os edifícios desenhados por Oscar Niemeyer e os jardins de Burle Marx.

No tempo em que não havia guias de arquitetura nem aplicativos, os visitantes acabavam batendo na porta de alguns dos protagonistas, ou seja, tocavam a campainha dos heroicos projetistas cariocas. Se o escolhido fosse Sérgio Bernardes, autor de algumas das melhores obras do período, invariavelmente, ele conduziria os visitante até a favela do Vidigal, ao lado de sua casa, que começava a se formar. “Essa é a arquitetura brasileira”, dizia, para espanto dos interlocutores.

Arquiteto Sérgio Bernardes
Arquiteto Sérgio Bernardes

A cada década que passa, a opinião de Bernardes faz cada vez mais sentido: há muito mais gente vivendo em barracos improvisados, no alto de morros ou em palafitas, do que em casas e apartamentos de requintada arquitetura. Nesse intervalo de tempo, o abismo social que separa os brasileiros só aumentou e a arquitetura e o design não poderiam deixar de espelhar essa realidade: no alto da pirâmide temos exemplos notáveis de desenho, técnica e qualidade de espaços que ilustram as publicações mais luxuosas do mundo; já na base, vive-se em espaços insalubres e até em áreas de risco.

O cruzamento desses dois mundos é um prato cheio para os registros fotográficos que, visualmente, colocam lado a lado a diferença de espaços, seja no contraste entre os morros cariocas e os bairros da zona sul, seja na discrepância dos barrados de Paraisópolis  com os prédios de apartamentos da avenida Giovanni Gronchi, no Morumbi, com uma piscina em cada andar –nesse contexto, a famosa foto de Tuca Vieira (em destaque, acima) correu o mundo, tornando-o célebre: “Às vezes essa foto me enche o saco. Tenho projetos novos para mostrar mas a cena de Paraisópolis com frequência ofusca outros trabalhos”, ele escreveu.

Sérgio Bernardes

Outro momento recente em que, indiretamente, esses dois universos se cruzaram foi no desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro paulistano, que, após um incêndio, veio ao chão, levando vidas. Ocupado por sem-teto, o edifício continha o melhor da arquitetura de negócios que o país conseguiu produzir nos anos 1960. Com desenho sofisticadíssimo, a torre de vidro foi traçada por Roger Zmekhol, nascido na França e formado no curso de arquitetura da USP. Ao ser transformado em casa para quem não tem casa, ele colocou, frente a frente, duas realidades distintas: as instalações e tapumes precários, típicos dos barracos, e a casa de vidro, símbolo máximo da modernidade (esse contraste foi registrado, três anos antes do incêndio, pelo fotógrafo Plínio Hokama Angeli).

O fato é que a Constituição diz que a habitação é um direito do cidadão, mas o Estado não tem recursos para cumprir a lei. Na história da arquitetura brasileira existem centenas de exemplos de  tentativas de se resolver o problema. No período heroico da arquitetura moderna brasileira, o exemplo mais conhecido é o do Pedregulho, conjunto habitacional no subúrbio carioca. Serpentiando os morros cariocas, o principal edifício tinha unidades dúplex e espaços coletivos. Na parte baixa do complexo, desenhado por Affonso Eduardo Reidy, havia uma escola, com jardins de Burle Marx e painel de Portinari. Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado desenharam o Cecap em Guarulhos, imaginado com grandes peças industrializadas, mas a construção acabou sendo convencional. Em Brasília, Lelé ensaiou o uso de estrutura pré-fabricada de concreto no Colina, e depois, em Salvador, criou componentes de argamassa armada para urbanizar áreas de risco. Em Pernambuco, durante o governo de Miguel Arrais, Acácio Gil de Borsói criou o Cajueiro Seco, como habitações de pau a pique e cobertura de sapé. Joan Villà desenvolveu uma técnica com painéis de tijolos armados, dentro de um laboratório universitário, e construiu interessantes exemplos em Campinas.

Sérgio Bernardes
Conjunto habitacional Pedregulho

Sem entrar na seara da urbanização de comunidades, cujo know-how dos arquitetos brasileiros é notável, a lista de colaboração de projetistas ao tema é enorme, e envolve técnicas diferentes e partidos arquitetônicos diversos. Mas a solução está muito longe de ser alcançada, e não é o Minha Casa, Minha Vida que o fará. Entre os inúmeros problemas que o programa tem, um dos maiores é insistir em criar guetos periféricos, aumentando ainda mais nossa vala social.

Um alento, para que o leitor não corte os pulsos: em 2008, foi aprovado no Congresso Nacional a lei no11.888 que obriga as prefeituras a contratarem arquitetos para atender, gratuitamente, as populações de baixa renda. É uma lei que ainda não “pegou”, mas se houver pressão social, ela poderá melhor aquilo que Sérgio Bernardes um dia chamou de arquitetura brasileira.

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Fernando Serapião
Colunista
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Crítico de arquitetura, Fernando é fundador e editor da revista Monolito, publicada em São...

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